Porque sempre fui muito mais ligado na DC do que na Marvel, eu ignorei o
Demolidor por muitos anos. Não ajudava em nada ter comprado o senso-comum de que “o Demolidor é o
Batman
da Marvel”. Não é, e bastam poucas leituras para desfazer o equívoco.
Ainda que existam similaridades (homens com vida dupla, obstinados em
promover justiça, mesmo quando isso os coloca à margem da lei),
Bruce Wayne e
Matt Murdock passam longe de ser original e cópia.
Eis que, de uns tempos pra cá, a quantidade de Marvel em minha
coleção cresceu a olhos vistos, e um dos itens que tenho comprado com
mais gosto é justamente a coleção
Deluxe do Demolidor, com as fases de
Brian Michael Bendis e
Ed Brubaker. Não tem erro ali: é um grande momento atrás do outro, uma regularidade impressionante. Podia ter lido as fases de
Mark Waid e
Charles Soule? Podia, mas a numeração já ia lá longe, e eu sou um verme colecionista.
Daí que, imagine a minha sorte, a Panini anuncia este número 1 –
seguindo a renumeração do original americano, coisa que a Marvel faz de
vez em sempre.
Vou inverter minha tradicional ordem de comentários, porque é
impossível não contemplar demoradamente as fantásticas capas do
argentino
Julian Totino Tedesco, a um só tempo tão
simples e tão expressivas. Bônus: parece que a mania da Panini de tascar
uma chamada bombástica na capa está em declínio. Nada para desviar
nossa atenção do que importa: a arte.
Por dentro, o ilustrador é o italiano
Mark Checchetto, em cinco das seis histórias. Com auxílio da bonita colorização do indonésio
Sunny Gho, Checchetto desenha uma Nova York suja, fumacenta, bastante crível. Ainda que não seja um gênio noir do calibre
Michael Lark ou
Alex Maleev,
ele capricha nas proezas físicas de seu Murdock meio magro e entrega
bela pancadaria nas cenas de ação – com destaque pra um mano-a-mano no
meio da rua, com plateia e tudo.
Por fim, temos
Chip Zdarsky (“nome de guerra” do
canadense Steve Murray), que parece ser de uma estirpe rara de
escritores: alguém capaz de pegar qualquer personagem, investir na sua
essência clássica e, mesmo assim, entregar histórias com elementos
renovadores e muito habilmente escritas. O único outro nome atual em que
consigo pensar como um rival para Chip Zdarsky nesta habilidade é
Tom Taylor.
A fase de Charles Soule terminou com Matt Murdock sendo gravemente
ferido em um atropelamento. Zdarsky começa com Matt em processo de
recuperação física e mental. Porém, mesmo longe de sua melhor forma, ele
ainda se sente em condições de patrulhar. Além da debilidade, pesam
contra ele uma lei anti-vigilantismo de
Wilson Fisk, o Rei do Crime, e a chegada de um policial linha-dura transferido de Chicago, o impoluto detetive
Cole North.
Um dia em que o Demolidor não se estrepa todo não pode ser um bom
dia, mas as coisas fogem do controle de forma estarrecedora: um ladrão
agredido pelo herói acaba morrendo. Confuso, fraco e caçado, Matt espera
conseguir provar uma armação contra ele, mas o detetive North está em
toda parte – e não gosta nadinha do Demolidor.
Matt Murdock: #MortoComFarofa
Espremido entre uma cena de flerte no bar e outra de pós-coito, está
um diálogo fantástico entre Matt, quando criança, e o padre de sua
paróquia. É disto que falo quando menciono a habilidade de Zdarsky em
conhecer o personagem em seu âmago: aquele certamente foi um
momento-chave para a definição do norte moral do Demolidor de jamais
tirar uma vida. Já no presente, ele tem que enfrentar a súbita onda de
admiração do mais improvável dos fãs: o
Justiceiro, seu virtual nêmesis ideológico, com o qual tem embates verbais arrepiantes.
Uma sexta história, bem curtinha, é desenhada pelo próprio escritor,
com um resgate sendo mostrado como o vemos em uma página e, na outra,
como o Demolidor o vê.
Só Medo era a porta de entrada que eu
esperava. Ela se abriu, eu entrei. É um gibi que dispara para o alto o
indicador de suas expectativas sobre o que é um bom quadrinho. Chega a
ser proverbial que histórias sobre um homem cego sirvam para abrir os
olhos da gente de tantas maneiras.