segunda-feira, 20 de julho de 2020

Para começar a ler - Demolidor Só medo

Demolidor #1: Só Medo


Porque sempre fui muito mais ligado na DC do que na Marvel, eu ignorei o Demolidor por muitos anos. Não ajudava em nada ter comprado o senso-comum de que “o Demolidor é o Batman da Marvel”. Não é, e bastam poucas leituras para desfazer o equívoco. Ainda que existam similaridades (homens com vida dupla, obstinados em promover justiça, mesmo quando isso os coloca à margem da lei), Bruce Wayne e Matt Murdock passam longe de ser original e cópia.
Eis que, de uns tempos pra cá, a quantidade de Marvel em minha coleção cresceu a olhos vistos, e um dos itens que tenho comprado com mais gosto é justamente a coleção Deluxe do Demolidor, com as fases de Brian Michael Bendis e Ed Brubaker. Não tem erro ali: é um grande momento atrás do outro, uma regularidade impressionante. Podia ter lido as fases de Mark Waid e Charles Soule? Podia, mas a numeração já ia lá longe, e eu sou um verme colecionista.
Daí que, imagine a minha sorte, a Panini anuncia este número 1 – seguindo a renumeração do original americano, coisa que a Marvel faz de vez em sempre.
Vou inverter minha tradicional ordem de comentários, porque é impossível não contemplar demoradamente as fantásticas capas do argentino Julian Totino Tedesco, a um só tempo tão simples e tão expressivas. Bônus: parece que a mania da Panini de tascar uma chamada bombástica na capa está em declínio. Nada para desviar nossa atenção do que importa: a arte.
Por dentro, o ilustrador é o italiano Mark Checchetto, em cinco das seis histórias. Com auxílio da bonita colorização do indonésio Sunny Gho, Checchetto desenha uma Nova York suja, fumacenta, bastante crível. Ainda que não seja um gênio noir do calibre Michael Lark ou Alex Maleev, ele capricha nas proezas físicas de seu Murdock meio magro e entrega bela pancadaria nas cenas de ação – com destaque pra um mano-a-mano no meio da rua, com plateia e tudo.

Por fim, temos Chip Zdarsky (“nome de guerra” do canadense Steve Murray), que parece ser de uma estirpe rara de escritores: alguém capaz de pegar qualquer personagem, investir na sua essência clássica e, mesmo assim, entregar histórias com elementos renovadores e muito habilmente escritas. O único outro nome atual em que consigo pensar como um rival para Chip Zdarsky nesta habilidade é Tom Taylor.
A fase de Charles Soule terminou com Matt Murdock sendo gravemente ferido em um atropelamento. Zdarsky começa com Matt em processo de recuperação física e mental. Porém, mesmo longe de sua melhor forma, ele ainda se sente em condições de patrulhar. Além da debilidade, pesam contra ele uma lei anti-vigilantismo de Wilson Fisk, o Rei do Crime, e a chegada de um policial linha-dura transferido de Chicago, o impoluto detetive Cole North.
Um dia em que o Demolidor não se estrepa todo não pode ser um bom dia, mas as coisas fogem do controle de forma estarrecedora: um ladrão agredido pelo herói acaba morrendo. Confuso, fraco e caçado, Matt espera conseguir provar uma armação contra ele, mas o detetive North está em toda parte – e não gosta nadinha do Demolidor.

Matt Murdock: #MortoComFarofa
Espremido entre uma cena de flerte no bar e outra de pós-coito, está um diálogo fantástico entre Matt, quando criança, e o padre de sua paróquia. É disto que falo quando menciono a habilidade de Zdarsky em conhecer o personagem em seu âmago: aquele certamente foi um momento-chave para a definição do norte moral do Demolidor de jamais tirar uma vida. Já no presente, ele tem que enfrentar a súbita onda de admiração do mais improvável dos fãs: o Justiceiro, seu virtual nêmesis ideológico, com o qual tem embates verbais arrepiantes.
Uma sexta história, bem curtinha, é desenhada pelo próprio escritor, com um resgate sendo mostrado como o vemos em uma página e, na outra, como o Demolidor o vê.
Só Medo era a porta de entrada que eu esperava. Ela se abriu, eu entrei. É um gibi que dispara para o alto o indicador de suas expectativas sobre o que é um bom quadrinho. Chega a ser proverbial que histórias sobre um homem cego sirvam para abrir os olhos da gente de tantas maneiras.

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